Retratos em foco: o renascimento do humano nas artes visuais

Vivemos uma era marcada pela velocidade e pela superexposição. Imagens são produzidas em uma escala vertiginosa, captadas, editadas e descartadas com a mesma rapidez com que deslizamos os dedos por uma tela. Nesse contexto, a efemeridade tornou-se um dos traços mais característicos da cultura visual contemporânea. No entanto, contra esse fluxo incessante e muitas vezes impessoal, um movimento silencioso vem ganhando força: a revalorização do retrato — não como mero registro fisionômico, mas como território de profundidade, permanência e afirmação da identidade.

Jorge Souza, s/t ,2024, Óleo sobre tela, 60x50cm

O retrato, uma das mais antigas expressões das artes visuais, ressurge hoje com novo fôlego, especialmente no circuito da arte contemporânea. Artistas de diversas linguagens e origens têm voltado seu olhar para o ser humano, não apenas como modelo, mas como matéria poética, política e emocional. A figura humana, que por algum tempo foi deslocada por experimentações abstratas ou conceituais, retorna ao centro da cena. E esse retorno não é inocente: ele carrega consigo uma demanda por reconhecimento, empatia e conexão.

Em um mundo saturado de selfies, o retrato artístico se distingue justamente por sua recusa à pressa. Ao contrário da imagem instantânea e muitas vezes automatizada, o retrato exige tempo. Tempo para olhar, tempo para ser olhado, tempo para traduzir em cor, forma, gesto ou textura algo que não se esgota na superfície. O retrato contemporâneo não busca apenas "mostrar" alguém, mas revelar camadas invisíveis: afetos, conflitos, histórias silenciadas.

BRUNØVAES, Therian, 2024, Óleo e grão de ciproterona sobre tela, 30 x 20 cm

O humano como tema e como urgência

O recente aumento do interesse por retratos não pode ser dissociado de uma série de transformações sociais e culturais. A crescente valorização da diversidade — racial, de gênero, de corpos, de vivências — gerou um desejo de ver refletidas nas artes imagens que nos representem de forma mais complexa e honesta. Nesse contexto, o retrato se torna uma ferramenta poderosa para dar rosto e corpo a quem historicamente foi invisibilizado.

Artistas negros, indígenas, LGBTQIAP+, periféricos e migrantes têm utilizado o retrato como dispositivo de afirmação e denúncia. Ao pintar, desenhar, fotografar ou filmar a si mesmos — ou aqueles que compõem suas comunidades — eles reconfiguram o cânone visual e expandem as possibilidades de pertencimento. Não se trata apenas de incluir mais rostos, mas de transformar as estruturas de representação: quem olha? Quem é olhado? Em que condições?

Nesse sentido, o retrato contemporâneo se aproxima de uma prática de resistência. Ele desnaturaliza padrões de beleza, desafia estereótipos, desmonta as hierarquias da imagem. E ao mesmo tempo, celebra a singularidade — cada rosto como universo, cada corpo como narrativa. Mais do que capturar o “parecido”, o retrato atual busca o sensível, o simbólico, o político.

Marcio Marianno, Respiro do tuaregue, 2022, Óleo sobre tela, 50 x 40 cm

O gesto de eternizar

Se a fotografia digital multiplicou os retratos em escala industrial, a pintura, o desenho e até a escultura oferecem hoje um contrapeso interessante: a ideia de permanência. Cada retrato realizado em tinta, carvão, pedra ou pixel com intenção artística carrega consigo o desejo de durar, de sobreviver ao fluxo das redes e aos algoritmos da obsolescência. Talvez por isso tantos artistas contemporâneos estejam resgatando técnicas tradicionais, como a pintura a óleo ou o retrato escultórico, para elaborar questões atuais.

Esse gesto de "eternizar" é ao mesmo tempo nostálgico e subversivo. Em vez de registrar elites ou celebridades — como foi comum em outras épocas —, os retratos de hoje frequentemente voltam-se para o comum, o íntimo, o marginal. Rostos cansados, expressões melancólicas, corpos marcados pelo tempo e pela luta. Há uma beleza crua nesses retratos: eles não idealizam, mas dignificam. Eles não embelezam, mas revelam.

O retrato expandido

Além da volta ao retrato figurativo tradicional, outro fenômeno que acompanha esse movimento é o chamado "retrato expandido" — quando a representação da identidade ocorre por meio de metáforas visuais, objetos simbólicos, paisagens internas. Muitos artistas optam por retratar a presença humana de modo não literal, usando elementos que falam do sujeito sem mostrar sua fisionomia.

Autorretratos sem rosto, instalações que evocam uma memória familiar, vídeos que exploram o corpo em movimento: tudo isso participa da revalorização do ser humano nas artes, mesmo quando sua imagem é substituída por signos. É o que podemos chamar de retrato da experiência — uma abordagem mais subjetiva e conceitual, que busca acessar o sujeito para além da aparência.

Nesse processo, a ideia de identidade também se complexifica. O retrato contemporâneo não busca mais uma essência fixa, mas acolhe a fluidez, a multiplicidade, a contradição. O sujeito representado é, muitas vezes, fragmentado, em trânsito, em construção. E é exatamente essa instabilidade que torna esses retratos tão potentes: eles nos lembram que ser humano é, acima de tudo, estar em processo.

Jorge Souza, s/t, 2024, Óleo sobre tela, 60x50cm  

O olhar como pacto

Por fim, é importante lembrar que o retrato não acontece apenas no gesto do artista: ele se completa no olhar do outro. Ao contemplar um retrato, nos confrontamos com a alteridade — e, muitas vezes, conosco mesmos. Há uma espécie de pacto silencioso entre quem representa, quem é representado e quem observa. Um pacto que exige presença, atenção e sensibilidade.

Talvez seja isso que explique o fascínio renovado pelo retrato em tempos tão acelerados: o desejo de olhar e ser olhado com profundidade, de criar vínculos para além da superfície, de reaprender a ver o outro — e, quem sabe, a nós mesmos — com mais generosidade.

O retrato, hoje, mais do que um gênero artístico, é um gesto de cuidado. Em meio ao ruído das imagens descartáveis, ele nos oferece uma pausa. Uma chance de escutar com os olhos. De reconhecer o humano em sua inteireza, falha e complexidade.

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