Marcenaria Olinda: a madeira como gesto, tempo e território
Em uma era marcada pela velocidade do consumo e pela crescente desmaterialização da experiência, a Marcenaria Olinda se afirma como um gesto de resistência. Fundada em 2015 por Fernando Ancil, a oficina é mais do que um espaço de produção artesanal: é um território de pesquisa, memória e invenção, onde práticas artísticas, pedagógicas e comunitárias se entrelaçam com o tempo lento da madeira e o vigor simbólico do fazer manual.
Inicialmente sediada no sítio histórico de Olinda — cidade que já é, por si, uma palimpsesto de culturas —, a Marcenaria Olinda hoje pulsa no coração rural de Paudalho, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Em Chã de Capoeira, entre fragmentos de Mata Atlântica e a sabedoria acumulada de comunidades tradicionais, o galpão da marcenaria abriga ferramentas manuais e elétricas, tipos diversos de madeira de reuso e um espírito criativo que desafia fronteiras entre arte, design, arquitetura, educação e ecologia.
Marcenaria Olinda. Foto cedida pela Marcenaria Olinda.
A madeira como linguagem ancestral
Para Fernando Ancil, a madeira não é apenas um material a ser manipulado, mas uma linguagem a ser escutada. Suas veias, fissuras e cheiros são registros de um tempo não-linear, de uma história que sobrevive à obsolescência industrial. Ao optar exclusivamente por madeiras reaproveitadas, a Marcenaria Olinda estabelece um pacto ético com a matéria: cada móvel, escultura ou instalação carrega em si não apenas um propósito funcional, mas também uma narrativa. É a memória do material, reativada pelo gesto, que define a poética do projeto.
Esse compromisso com o reuso transcende o discurso ecológico. É uma afirmação estética e política de que o passado pode ser matéria de futuro. Cada madeira resgatada se torna corpo de uma nova existência — um corpo que não apaga o anterior, mas o incorpora. Assim, a Marcenaria Olinda se inscreve em uma tradição moderna brasileira que vê no artesanal não um atraso, mas uma vanguarda: um modo de produção capaz de conjugar técnica e afeto, precisão e improviso, permanência e atualização.
Entre comunidades, saberes e territórios
A potência da Marcenaria Olinda não se restringe à criação de objetos. O projeto se expande como plataforma de escuta, de troca e de formação. Oficinas com crianças de escolas públicas, parcerias com assentamentos rurais, residências com povos indígenas e trocas com grupos culturais locais transformam o espaço da marcenaria em um lugar vivo de transmissão e reinvenção de saberes. O fazer coletivo se torna forma de resistência, de afirmação cultural e de reconstrução do vínculo entre o humano e o território.
Ao aliar arte e educação popular, o projeto se posiciona como um agente de transformação social. Não há paternalismo nem intervenção verticalizada, mas sim uma escuta atenta aos saberes locais e uma disposição a aprender com eles. A madeira, nesse contexto, é o catalisador — o meio pelo qual se constroem relações, histórias e futuros possíveis.
Feira, 2022. Madeira, prego e tinta. Dimensões variáveis.
Arte, ecologia e urgência crítica
A atuação da Marcenaria Olinda também se inscreve no debate contemporâneo sobre crise ambiental e justiça climática. Em 2023, com curadoria de Gabriel Bogossian, o projeto apresentou a exposição Manter em pé o que resta não basta — título que, por si só, já aponta para a necessidade de ultrapassar a lógica da preservação passiva e pensar em ações propositivas de regeneração. A mostra reuniu obras que exploravam a madeira em suas dimensões culturais, ecológicas e simbólicas, promovendo reflexões sobre a devastação das florestas e o esgotamento de nossos vínculos com a natureza.
Como parte da exposição, foi realizada uma ação agroflorestal: o plantio de mil mudas de pau-brasil na Serra dos Paus Dóias, no sertão do Araripe — gesto que reafirma a potência da arte como prática ativa, como intervenção real no mundo. Ao reunir artistas, agricultoras, pesquisadores e comunidades locais, a Marcenaria Olinda tornou-se mediadora de um fazer sensível e comprometido com a vida em todas as suas formas.
Autorretrato, 2019. Fotografia. Impressão photorag 310g. 167 × 112cm (cada).
Marcenaria Olinda como dispositivo poético e político
Em sua tessitura complexa, a Marcenaria Olinda propõe um modelo de criação que rompe com as divisões modernas entre arte e ofício, entre teoria e prática, entre cultura e natureza. Seu trabalho nos convoca a repensar as formas de produção, os ritmos do tempo e os modos de ocupação do espaço. É um projeto que não se limita a objetos ou exposições, mas que se apresenta como um processo contínuo de reinvenção de mundos possíveis.
Neste sentido, mais do que uma marcenaria, trata-se de um dispositivo poético e político — um organismo vivo que pulsa entre memórias da madeira, cartografias afetivas e gestos de transformação coletiva. Em um mundo que busca reencontrar o sentido do comum, da escuta e da permanência, a Marcenaria Olinda oferece não apenas obras de arte, mas um modo de estar no mundo. Um modo que escuta, acolhe e cria — com e a partir do que já existe.