A pintura como afirmação de si: a poética de Marcio Marianno

Na produção de Marcio Marianno, a pintura se apresenta não apenas como meio expressivo, mas como campo de afirmação existencial e elaboração de memória. Nascido em São Paulo, em 1978, o artista vive e trabalha no centro da cidade, onde mantém seu ateliê e desenvolve uma prática que transita entre a tradição técnica da pintura a óleo e a construção de narrativas visuais profundamente subjetivas. Também atua como educador, ministrando aulas de pintura tanto em seu ateliê quanto em unidades do Sesc, reafirmando seu compromisso com a partilha do conhecimento artístico como prática coletiva e política.

Marianno tem se dedicado, nos últimos anos, a uma investigação intensa sobre a linguagem pictórica, especialmente no que diz respeito à representação da figura masculina negra na arte contemporânea. Seu trabalho inscreve o corpo — sobretudo o seu próprio — como protagonista de uma iconografia que articula questões identitárias, memória e pertencimento. Trata-se de um corpo que performa, que encarna e que questiona: quem é esse homem negro que pinta a si mesmo? Onde está inserido no imaginário coletivo? Quais histórias o constituem?

Suas pinturas frequentemente nascem de fotografias e estudos de observação, mas transcendem a representação literal para construir imagens alegóricas, carregadas de densidade simbólica. Os autorretratos, por exemplo, raramente apresentam rostos definidos. Em vez disso, vemos silhuetas, sombras, presenças ambíguas que habitam cenas suspensas no tempo. São figuras que parecem buscar seu lugar no presente ao mesmo tempo em que dialogam com uma ancestralidade não esquecida. Há algo de performático nesses corpos — como se cada pintura fosse uma encenação íntima, uma tentativa de fixar no plano da tela os gestos e afetos de uma existência em constante reconfiguração.

Marcio Marianno, 100% Algodão, Tríptico, 2017, Óleo sobre tela, 30 x 20 cm (cada tela)

A atmosfera de suas obras é marcada por uma paleta escura, densa, que evoca sentimentos de introspecção, solidão e resistência. Ao mesmo tempo, surgem, aqui e ali, cores vibrantes, grafismos e composições que remetem à cultura pop — traços da experiência anterior do artista como ilustrador, animador e editor de vídeo, e também como skatista. Essas referências não são meramente estéticas: elas tensionam o classicismo da pintura a óleo com um repertório urbano, gráfico e atual, dando à obra de Marianno uma potência híbrida, que se nutre do passado sem se desvincular do presente.

Mesmo quando a figura humana não está diretamente representada, seus trabalhos continuam a operar como autorretratos. Objetos, paisagens e fragmentos materiais — uma cadeira, uma parede, um feixe de luz — tornam-se depositários da subjetividade do artista. São vestígios de memória, mapas afetivos, elementos de uma iconografia pessoal que, ao mesmo tempo, reverbera questões coletivas. Afinal, falar de si, nesse contexto, é também falar de uma história mais ampla: a do homem negro que se inscreve na história da arte por meio de sua própria imagem e gesto.

Marcio Marianno, O regador, 2016, Óleo sobre tela, 70 x 50 cm

A construção de suas pinturas se dá em camadas. Marianno emprega técnicas clássicas como as veladuras, sobreposições e transparências, criando superfícies que revelam e ocultam simultaneamente. Esse modo de fazer não é apenas técnico, mas simbólico: cada camada se torna metáfora de uma história contada aos poucos, como quem desenterra lembranças ou refaz percursos internos. Assim, o ato de pintar se aproxima do gesto arqueológico — um processo em que o artista se torna desbravador de si mesmo.

Marcio Marianno, O novo preto velho, 2013, Óleo sobre MDF, 40 x 35 cm

Indicado ao Prêmio PIPA em 2022, Marianno participa agora da exposição coletiva Corpos em tensão: masculinidades em perspectiva, que estreia no dia 26 de abril na Lança Galeria. A mostra reúne artistas que, a partir de diferentes suportes e linguagens, investigam as múltiplas formas de ser homem hoje, deslocando estereótipos e problematizando narrativas hegemônicas. No contexto dessa exposição, o trabalho de Marianno se destaca não apenas pela força técnica, mas sobretudo pela maneira como articula subjetividade, crítica social e sensibilidade poética em um só gesto.

Em tempos em que a imagem do corpo negro ainda é, muitas vezes, regulada por olhares externos e históricos de exclusão, a obra de Marcio Marianno oferece uma contranarrativa potente. Ao pintar a si mesmo — mesmo quando não vemos seu rosto — o artista afirma: estou aqui, construindo minha própria imagem, camada por camada.

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