Entre o animal e o símbolo: a pintura como ecologia do sensível em Artur Rios

Em um mundo cada vez mais dissociado da natureza, onde o corpo é muitas vezes percebido como máquina e a arte, como mercado, a obra de Artur Rios se coloca como um convite ao reencontro com o instintivo, o selvagem e o simbólico. Nascido na Bahia, formado em Artes Plásticas pela UFBA e com especialização em Arteterapia, Rios construiu uma trajetória que entrelaça técnica e pulsão, fantasia e crítica, em uma pintura que evoca não apenas imagens, mas atmosferas.

Sua entrada no universo das artes segue uma narrativa comum a muitas infâncias — o prazer em desenhar, em pintar, em se expressar visualmente. Mas o que diferencia Artur é o percurso de continuidade: o estímulo e a crença da família em seu talento foram fundamentais para transformar esse impulso em vocação. "Vejo minha família como um grande apoio ao crer no valor do fazer arte", afirma.

Artur Rios, Aparição III, 2024, Acrílica sobre tela, 90 x 70 cm

A pintura como travessia sensível

Na obra de Artur Rios, a pintura opera como travessia — não apenas entre gêneros e estilos, mas entre estados de consciência e formas de existência. Sua prática se ancora em um figurativismo híbrido que flerta com o impressionismo pelas massas de tinta visíveis, pinceladas assumidas e cromatismo sensível; com o surrealismo pela elaboração de cenas que desafiam a lógica da realidade objetiva; e com o fantástico, ao tensionar o verossímil e o impossível com equilíbrio sutil.

Seu gesto pictórico — batizado com irreverência de “embolato” — é uma técnica intuitiva e inventiva, em que a tinta é aplicada e misturada diretamente sobre a tela, sem passar pelo godê. O resultado são superfícies densas e táteis, quase escultóricas, nas quais a textura ganha protagonismo e confere sensualidade ao ato de ver. O olhar desliza por relevos cromáticos que evocam pele, pelo, terra — uma materialidade viva que convoca o tato por meio da visão.

Mas o que distingue sua pintura não é apenas sua fatura, e sim sua capacidade de propor deslocamentos simbólicos. As cenas que Rios cria são habitadas por presenças inesperadas: animais silvestres surgem em espaços humanos, não como metáforas inofensivas, mas como perturbações da ordem. O estranho irrompe na rotina, e o que poderia ser lido como fabulação revela-se profundamente real — flagras que, embora possíveis, parecem sonhados. É nesse território da ambiguidade que sua pintura se instala: entre o espanto e o reconhecimento, entre o delírio e a documentação. “Gosto de imagens que não se revelem por completo, que provoquem e se deixem habitar”, afirma o artista, enfatizando seu interesse por uma arte que não se esgote na primeira leitura.

O corpo como ecossistema simbólico

Entre os eixos centrais de sua pesquisa está a relação complexa entre corpo e ambiente — uma ecologia ampliada que inclui tanto o animal literal quanto o simbólico. Em suas telas, Rios tensiona a ideia de pertencimento espacial e identitário: quem invade quem? Quando um animal atravessa o limite da cidade, é ele o invasor ou nós os ocupantes? Sua obra desestabiliza a perspectiva antropocêntrica, revelando as camadas colonizadoras ainda presentes em nossa forma de habitar o mundo.

Além do animal exterior, há também o animal interno — instintivo, pulsional, misterioso — que atravessa os corpos humanos representados pelo artista. Corpos que, fundidos a elementos naturais como troncos, folhas ou rochas, deixam de ser figura isolada para se tornarem parte de um organismo maior. Suas composições estabelecem uma simbiose visual e simbólica: não há fronteiras nítidas entre pele e casca, entre ser e ambiente. Tudo pulsa em conjunto.

A escolha deliberada por corpos diferentes do seu — sobretudo femininos — revela uma ética sensível de representação. Longe da apropriação inconsciente, Artur afirma o cuidado em manter coerência diante da alteridade: “Representar o outro exige responsabilidade, sobretudo quando se está em um lugar de fala marcado”, observa. Em um tempo em que imagens ainda são produzidas a partir de hierarquias e silenciamentos, sua postura é tanto política quanto poética.

Artur Rios, Os Leões, 2023, Acrílica sobre tela, 120 x 90 cm.

Influências, cruzamentos e fabulações visuais

A formação do imaginário de Rios é tão plural quanto sua paleta pictórica. Desde a infância, mergulhava nos livros de arte de sua mãe, encantando-se com os mundos esquisitos de Bosch, a dramaticidade lumínica de Goya e a liberdade compositiva de Dalí. Com o tempo, seu repertório expandiu-se para incluir artistas contemporâneos como Aleksandra Waliszewska, Oleg Vdovenko e Eliran Kantor — todos partilhando certa atmosfera densa, sombria e intensamente expressiva.

Essa complexidade simbólica se estende para além da história da arte. Videogames como Diablo e Skyrim — com suas estéticas apocalípticas e narrativas imersivas — tornaram-se fonte legítima de referência visual e emocional. O mesmo vale para o cinema, com títulos como O Anjo Exterminador, Nosferatu, Anticristo e Border, que, à sua maneira, também lidam com instabilidades entre o real e o inconsciente, o ritual e o descontrole. Rios reconhece nesses cruzamentos um terreno fértil para construir uma pintura que vá além da tela — que dialogue com os arquétipos, com o medo, com o desejo.

Pintura como crítica da forma e da forma de vida

Embora não se assuma como um artista engajado nos moldes clássicos, Artur Rios enxerga em sua obra um gesto de protesto — não panfletário, mas simbólico. Sua crítica emerge dos deslocamentos que propõe: ao nos confrontar com a presença do animal em ambientes urbanos, nos força a pensar em pertencimento, hierarquia, exclusão. Quem define a posse de um território? Como se legitima o viver do outro?

Sua pintura é também um convite a reconhecer a animalidade que nos constitui — aquela que, em tempos de razão instrumental e controle, é recalcada ou patologizada. Há, portanto, uma denúncia sutil ao modelo moderno de separação entre corpo e natureza, entre razão e instinto. A arte de Rios propõe uma ética do entre — um modo de ver que seja também um modo de coexistir.

Artur Rios, Porta II, 2024, Acrílica sobre tela, 70 x 60 cm.

Mistério, erotismo e abertura simbólica

Se há algo que atravessa todas as camadas da obra de Artur Rios, é o mistério. Um mistério não como ausência de sentido, mas como excesso de sentidos possíveis. Suas pinturas não explicam, mas sugerem. São imagens que se oferecem como enigma, que não se encerram em narrativas lineares. “Busco provocar sensações de estranhamento e deleite ao mesmo tempo. Quero que o espectador se envolva, se aproxime, se perca um pouco”, diz o artista.

A sensualidade aparece não apenas no tema — muitas vezes centrado no corpo —, mas na própria matéria pictórica. A textura da tinta, as camadas sobrepostas, o gesto visível do pincel: tudo convida a um olhar tátil, quase corporal. O simbólico, por sua vez, emerge no entrelaçamento dos elementos, na justaposição de signos, na composição ambígua que demanda tempo e atenção. Ver uma obra de Rios é entrar em um espaço de escuta — da imagem, de si, do outro.

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